sábado, 26 de março de 2011

Desperdício de talento: 7 perícopes de leveza para o fim de semana

Meu contato com o mundo das artes sempre teve um caráter espiritualizado, não sei porquê. Tive um professor na pós-graduação que dizia "diante da arte só resta dizer um adorável:  ah!"  Comentar arte, na visão dele, era uma atitude de tremendo mau gosto, pois arte não foi feita para ser comentada, mas para ser admirada. Em certo grau concordo com ele, mas não consigo me furtar de comentar quando algo me inspira e emociona, e me emociono fácil. 

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Muita coisa me emociona. Me emociono com a sabedoria do ancião, com a espontaneidade das crianças, com o amarelo da flor do Ipê e com o vermelho dos Flamboyants no verão. O cheiro do Jasmin me emociona, a lua prateada me deixa encantada a ponto de escrever poemas, e a amizade de gente querida também me emociona, e nessa entra um ser que não é gente mas também é muito amigo: meu cachorro.

Me emociono com o talento e a criatividade do ser humano que se reflete nas artes em geral, na música em especial. Mas sou capaz de me emocionar também com  o sofrimento de outra pessoa, com a alegria e com o sucesso de alguém, com gente que ajuda gente, com gente que é capaz de um gesto carinhoso, generoso,  doador, sem intenção de receber algo em troca. 

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O senso do dever tende a me tomar todo tempo livre.  Acho que porque tenho tanto prazer nas coisas que faço que não me sinto trabalhando, então é muito comum, num final de semana bem tranquilo, no qual eu poderia colocar pernas para o ar e fazer nada, eu inventar de cuidar de jardim, capinar os canteiros, podar arbustos, replantar minhas flores roxas, amarelas, vermelhas. Então tenho que me policiar para interromper atividades, deitar e simplesmente descansar. 

Num desses fins de semana no qual jurei "não trabalhar" e realmente me dar ao direito de fazer o tal do "nada", fiz alguma coisa: assisti três filmes em uma só tarde. E acabei, como sempre, prestando atenção no viés da espiritualidade, refletindo na condição humana, admirando a criatividade dos produtores e me emocionando muito.

Um dos filmes se chamava "A dádiva de Nicholas", um menino de 7 anos que morreu num atentado criminoso fora de seu país e, depois de diagnosticada a morte cerebral, seus pais tiveram que tomar a difícil decisão de doar seus órgãos, numa terra estranha, e isso na Itália, o país que na época tinha a menor taxa de doação de órgãos de toda a Europa. A história deixou uma marca na vida do país.

O segundo se chamava "O gigante da planície", produção canadense, contando a história de Tommy Douglas, um pastor protestante com um forte ardor por justiça social, que depois abandonou o pastorado para se tornar um político militante pela justiça no seu país. Sofreu toda retaliação dos interesses contrários: ameaças, difamações, mas enfim, sua contribuição tornou-se marco histórico na vida da nação. 

Por fim, um finalzinho da reprise de "Apolo 13", o "fracasso bem-sucedido" da nave que foi avariada no espaço, cuja missão, de "pisar na lua" fez o sonho de seus astronautas se transformar num plano de emergência de translado e resgate da tripulação de volta à Terra em segurança .Três filmes que me mostraram a preocupação de um ser humano pela vida do outro, pelo bem- estar do outro, preocupação que se tornou heroísmo quando se converteu em atitude de alteridade e deixou uma marca para o mundo.

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Tive um tio que foi um homem muito generoso. Uma pessoa humilde de recursos materiais, mas sua casa vivia de portas abertas para qualquer pessoa que necessitasse de sua ajuda. Ele tinha um buffet e fazia coquetéis em festas. Lembro que meu primeiro trabalho remunerado foi com esse tio, ajudando a tampar empadas, enrolando croquetes e bolinhos de bacalhau e fechando pastéis.

Quando me mudei de SP para o RJ tive oportunidade de residir na casa de sua família durante uns 2 meses. Pude presenciar como as pessoas algumas vezes abusavam de sua boa-vontade. Aquilo me incomodava muito. Um belo dia perguntei a ele: tio, não te faz mal quando essas pessoas que o senhor ajuda "cospem no prato que comeram"? Como é que o senhor lida com esta ingratidão? Ele falou algo que nunca esqueci: "filha, se a pessoa vai cuspir no prato que comeu isso não é da minha conta, mas se está ao meu alcance fazer o bem e eu não faço, isso sim, diante de Deus, eu vou dar conta". Quando esse meu tio faleceu em 1997 ou 1998, no seu sepultamento havia perto de umas 400 pessoas. Uma grande congregação de gente agradecida e emocionada com a vida dele, que ali compareceu para abraçar minha tia e render um último tributo ao tio.

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Há um texto na Bíblia Hebraica que diz:  "as misericórdias do Senhor são a causa de não sermos consumidos". Quando leio essas coisas fico pensando, o que Deus vê no ser humano para sentir tanta misericórdia? 

Acredito que existe uma bondade escondida em cada ser humano que só precisa ser descoberta, potencializada, otimizada, incentivada e essa bondade está associada a seu talento criativo. Penso mais. Penso que ela é a essência de Deus dentro de todos nós. Por mais que conheçamos pessoas ruins, com um caráter reprovável, e atitudes mesquinhas, dificilmente alguém é totalmente ruim na sua integralidade.Sempre somos surpreendidos com atitudes de bondade e solidariedade que nos emocionam porque surgem de quem a gente menos espera.

Gosto de imaginar que Deus ama tanto ao ser humano, que está sempre olhando para nós  à procura de algo bom, e quando ele encontra com essa bondade,  parece que ela suplanta a feiúra das maldades e cobre uma "multidão de pecados".  Penso que nestas horas ele dá um largo sorriso e se enche de esperança a nosso respeito, apesar de nós! 

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Um tempo atrás presenciei uma situação curiosa. Um líder de equipe tinha tanta desconfiança de seus liderados, sempre achando que alguém estava ali preparado para suplantá-lo, para lhe puxar o tapete, para se destacar mais que ele, que nem reparou que um determinado liderado (que no entender dele era tremendamente ameaçador) era o maior talento de sua equipe. Era a pessoa mais leal e amiga que ele tinha no grupo, com quem ele poderia contar a qualquer momento para pedir ajuda e que ofereceria ajuda imediata, voluntária, de qualidade e desinteressada. Um líder não enxergou que seu liderado era doador, era entregue, era generoso. Ao contrário,  confundiu toda aquela bondade e generosidade com "carência afetiva" do liderado. Que lástima! O melhor talento do grupo. 

Com o tempo aquele liderado percebeu que qualquer ideia que ele desse no grupo era distorcida, evitada ou negligenciada. Com o tempo ele percebeu que suas boas intenções eram deturpadas. E me confidenciou: "estou deixando este grupo de trabalho porque não me sinto útil aqui, parece que o meu líder tem  medo de mim, como não estou aqui para atrapalhar nem ameaçar ninguém, estou partindo para outra".

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Uma pesquisa realizada pela  revista Liderança da editora Quantum revelou um dado preocupante: 82% das empresas tem perdido seus melhores talentos para a concorrência. Apenas 15% das empresas possui um programa de retenção de talentos. E enquanto ouvia a palestrante que forneceu esta informação, fiquei pensando: quantos dos talentos são desperdiçados porque as intenções dos donos desses talentos são ignoradas, deturpadas ou evitadas enquanto seus líderes se sentem ameaçados e ofendidos com tanta criatividade e com tal exuberância de eficiência?

Enquanto tratava de escolher os sócios que comporiam a minha empresa, me vi tentada a convidar uma pessoa, que nem tinha experiência com os negócios, mas  era tão mais criativa que eu, valia a pena capacitá-la com investimento de muito tempo e energia, e pensei: por que não? Claro que sim! Mais criativa do que eu! E temos sido uma ótima dupla.

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Neste fim de semana quero te fazer um convite especial: vamos exorcisar a paranóia das nossas vidas? Enquanto líderes precisamos acreditar que as pessoas são melhores do que piores. E se elas são melhores que nós, mais criativas que nós, não podemos nos sentir ameaçados com seu talento e com sua exuberância. Ela agrega valor ao nosso negócio.

A criatividade, o talento e a bondade no coração do ser humano estão aqui dentro, aí dentro. Ainda que nosso mundo tenha se tornado tão deformado, tão repleto de valores egoístas e narcisistas, essa criatividade, esse talento e essa bondade ainda nos leva às lágrimas, nos contorce as entranhas, nos move com compaixão em direção ao outro. Vamos potencializá-la nos nossos negócios? Vamos otimizar seus resultados em nossas equipes? Vamos nos esforçar para descobrir os talentos de nossos liderados e vamos empreender tempo desenvolvendo estes talentos no grupo?

Não desperdice água!
Mas não desperdice os talentos!

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