domingo, 20 de março de 2011

Pensando alteridade e afetividade


Alteridade: 
Estado ou qualidade do que é outro, distinto, diferente.  

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Uns 20 anos atrás uma amiga falou-me a respeito da situação familiar de outra pessoa. Me chamou a atenção uma coisa que ela disse: "que coisa mais triste, aquela mulher não sabe ser amada. Não sabe receber carinho, a gente vai abraçá-la e ela fica toda rígida, como se tivesse levado um choque, não consegue fazer um movimento, nem sorrir, parece horrorizada". 

Me lembrei de algumas pessoas que conheci na estrada da vida, que não sabem receber amor. Em geral, elas têm uma imagem de si próprias tão ruim, e são tão mal resolvidas consigo mesmas, que quando alguém aparece dando amor deliberado, rasgado e descarado, a pessoa praticamente se sente ofendida, não sabe o que vai fazer com aquilo. Afinal, se nem ela se ama, como admitir que outros a amem? A falta de jeito para receber amor é tão grande que elas acabam se tornando indiferentes, quando não se tornam hostis ao amor doado. Obviamente terminaram afastando as pessoas que as amavam. Não se perceberam alvo do interesse do outro e se esqueceram que amor, seja ele qual for, nunca se deve rejeitar. Deve-se sim, abraçar, acolher, desfrutar.

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Recentemente participei de um simpósio sobre administração em Recursos Humanos. Foi um evento ótimo. Dois palestrantes da área de coaching conseguiram me emocionar. Me emocionaram porque, num determinado momento da palestra eles fizeram todo o auditório olhar para o passado, para nossa infância tenra e sonhadora, e nos conduziram  a projetarmos nosso olhar para o futuro, já velhinhos, com nossos netos. 

Entre uma e outra cena, fomos levados a pedir perdão àquela criança sonhadora dentro de nós, por tudo que ela sonhou e que não conseguimos realizar. Mas também fomos conduzidos a parabenizar os velhinhos que seremos pelo tanto que conquistamos e realizamos em nossa vida. Foi um lindo momento de ser espiritualmente cuidada quando eu estava num encontro que, supostamente, focava a melhoria apenas do meu desempenho profissional.


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 Em 2008, época em que eu usava um outro blog para publicar textos acadêmicos, postei um texto intitulado "Sob as luzes da ribalta". Nesse artigo eu falei da forma como eu estava surpresa de ver o quanto certos apresentadores religiosos, que pretendem ocupar a mídia para trazer consolo e conforto às pessoas, acabavam usando o espaço e a oportunidade para travar verdadeiras cruzadas, uns grupos lançando dardos inflamados na direção dos outros, aquela coisa totalmente belicosa.

Falei também da surpresa que me era ver certos reality shows exercendo um papel efetivo de cuidado com o próximo e de educação neste sentido e,  muitas vezes, se olhássemos com cuidado, perceberíamos pessoas sendo cuidadas, reconciliadas, colocadas cara a cara para um confronto que levasse à solução de conflitos. Surpresas de uma tarde qualquer em que uma mulher resolve assumir a posse do controle remoto da TV...

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A pós-modernidade é um desafio para todos nós. Como resistir às facilidades providas pelos relacionamentos virtuais? Vale à pena encarar o desconforto do relacionamento concreto? Todo relacionamento é desgastante Alguns em maior grau, outros em menor grau. Mesmo se manifestando no ambiente virtual, pois ele é fruto do contato entre seres humanos, então, relacionamento virtual também é desgastante. 

Relacionamento requer, acima de tudo, investimento. Investimento de tempo, de energia, de disponibilidade, de paciência, de sacrifício, de confiança na outra pessoa, de desejo de estar com ela. Seja entre casais de namorados ou casados, seja entre amigos de verdade ou membros de uma família, seja entre líderes e liderados ou entre colegas de trabalho. Quaisquer pessoas que se recusem a limitar seus relacionamentos a um assento acolchoado na frente de uma tela enquanto operam um MSN ou um chat qualquer, sim, quaisquer pessoas que  queiram colocar a cara à mostra, "dar a cara à tapa", experimentarão o calor da proximidade com o outro ser humano. Às vezes esse calor traz queimaduras de grande proporção, às vezes ele aquece e acolhe. É o risco.

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Estava lembrando de um gibi que gosto muito: Calvin e Haroldo, criado por Bill Watson. Calvin é um menino hiperativo, com uma imaginação fertilíssima e filho único. Não brinca com outras crianças,  seu convívio social é limitado à sua mãe e seu pai em casa e, por poucas horas, com a professora e os coleguinhas na escola, eventualmente uma vizinha que também é colega de Calvin na escola participa das suas tirinhas. Haroldo é o tigre de pelúcia do Calvin. Eu imagino que esse tigre deveria ser muito sujo e todo puído porque Calvin leva Haroldo para todos os cantos. Haroldo é o melhor amigo de Calvin e fazem tudo juntos, mas só na imaginação do Calvin. O mundo paralelo que Calvin constrói com Haroldo  é tão perfeito que até o leitor fica na dúvida se Haroldo não é real. 

Cartunistas contemporâneos têm desenvolvido a vida do Calvin adolescente e adulto, quando ele sai inevitavelmente de sua "concha"  protetora da infância, seu mundinho imaginário muito agradável e, obrigado a amadurecer, tem que encarar a vida real. É hilariante ver as cenas nas quais Calvin, já adulto, fica travado, pensando que Haroldo o está vigiando, já que Haroldo faz parte de seu enxoval e o acompanha na faculdade e para onde vá. Calvin adulto já não sabe discernir muito bem entre o concreto e o imaginário... esquisofrenia a caminho ou já instalada?



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Numa visão mais mórbida e nada divertida das hilalriantes aventuras de Calvin e Haroldo, eles me lembram o sujeito pós-moderno, que não quer se envolver com o outro. Que prefere mil vezes cultivar uma amizade na qual se fala com o "amigo" por meio de e-mails e se dedica a ele a menor energia possível. Afinal, as prioridades deste sujeito pós-moderno, fechado no seu individualismo, sempre estão em primeiro plano. Não há espaço para a alteridade, não há espaço para se importar com os sentimentos do outro, mesmo que o outro seja um amigo concreto. Tigres de pelúcia e amigos de internet são muito mais fáceis de se administrar. Se o tigre nos machucar, a gente bate com ele na pedra até cansar, é de pelúcia, não estaremos matando ninguém. Se é de internet, é ainda mais fácil. É só usar o recurso chamado "ignorar". A gente apaga e resolve a questão. 

Eu não acredito em amizade virtual. Amizade de verdade é aquela que vem da doação, do investimento de energia, da canseira mesmo, sim, amigo cansa! Se não cansasse não seria amigo! Gente cansa! É aquela que gruda, que briga, que junta, que separa, que elogia e que dá bronca, que tolera tudo e que não tolera certas coisas... Da mesma forma, relacionamentos profissionais cansam. Poucos de nós paramos para contabilizar o fato que passamos, muitas vezes, mais tempo com nossos colegas de trabalho do que com nossos cônjuges e filhos. Sim, são os companheiros colaboradores na mesma organização que passam mais horas conosco, para a família damos o restante do tempo que nos sobra, sendo que deste tempo ainda temos que reservar as 8 horas de sono...

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Tenho andado por aí e vejo gente sem esperança, sem afeto, sem rumo, sem carinho, sem amor. Tenho me perguntado: "o que posso fazer por essa gente?" Sou uma pessoa afetuosa por natureza e manter meu afeto trancafiado me adoece. Tenho que liberar isso em algum canto. Ontem pensei nisso tão seriamente, que me imaginei se não está na hora de eu me dedicar integralmente a uma capelania hospitalar ou aos idosos, por exemplo. Quanta gente neste mundo está enferma ou abandonada, ou pior, enferma e abandonada, e não recebe um carinho, um abraço, um poema há tanto tempo. 

Às vezes a gente fica egocentrado, no meio do círculo volátil de amiguinhos próximos, achando que nos proporcionam alguma segurança, mas que na maioria das vezes vestiram a camisa da pós-modernidade tão bem que  nem fazem mais questão da nossa companhia. Enquanto isso milhares de pessoas morrem diariamente sem ouvir uma única vez que elas são preciosas, que elas são importante.

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Tecnologia é uma bênção mas também pode ser uma maldição quando nos leva à acomodação de substituir a presença de pessoas por e-mails, o contato humano por um twiter, a oportunidade de sentar e tomar um chá com um amigo por umas poucas palavras ditas em códigos e cheias de emoticons num MSN. Usemos estes recursos, mas não dispensemos a companhia das pessoas

Em gestão de pessoas, que Deus nos livre de sermos dominados pelo tecnicismo que nos faz  afastar do ser humano e celebrar nosso isolamento, de preferir bichos à pessoas porque bichos não nos desafiam, não nos questionam e não nos tiram da zona de conforto.

No exercício de nossa liderança profissional, não nos permitamos ensurdecer para o grito mudo que se ouve num "bom dia" tristonho, ou ficarmos cegos para o olhar das pessoas, tantas vezes carregado de dor, de tanta história de tristeza e decepção.

Enquanto escrevo aqui, faço uma prece pedindo por libertação. Que sejamos libertos do tecnicismo, do produtivismo, do ativismo, do egoísmo, e de outros "ismos" tão doentios que nos fazem ignorar a dor do nosso próximo, o sofrimento de um indigente, o desamor que leva alguém ao abandono. Peço por libertação daquelas algemas que nos prendem e não nos permitem sentar com as pessoas, ouvir seus problemas, segurar-lhes a mão e fazer uma prece por elas. E que Deus que nos livre de não conseguirmos mais chorar  por outro alguém porque lá no fundo, achamos  que não vai fazer a menor diferença.

Shalom!





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